TERRIVELMENTE JUIZ

Por Paulo Afonso Linhares

Apesar do que o ex-ministro da Justiça Saulo Ramos disse sobre ele no autobiográfico “Código da Vida” (“Entendi que você é um juiz de merda!”), o homem colocou no Supremo Tribunal Federal, o ministro Celso de Mello, se construiu como um dos grandes juízes daquela Corte mais do que centenária. Embora prolixo e quase sempre detalhista em seus votos, Celso de Mello tornou-se, nos 31 anos de atuação como membro da mais alta Corte brasileira, uma referência de julgador íntegro, liberal e progressista. Ao completar 75 anos vai para inatividade. Enfim, um grande magistrado deixa a bancada do Supremo Tribunal Federal nesse dia 13 de outubro de 2020, num dos momentos mais difíceis que esta nação enfrenta, nos seus múltiplos aspectos: social, econômico e político. 

O ministro Celso de Mello, com seu sotaque de forte acento paulistano e seus votos por vezes quilométricos, certamente será uma sentida ausência.  Saulo Ramos, genial advogado, decerto cometeu fatal equívoco: Celso de Mello jamais foi um “juiz de merda”. Foi integralmente juiz e, doravante, no belo tempo que lhe resta de existência, há de  experimentar a placidez do convívio de seus entes queridos. Sê feliz. Ave, Celso!

Um sobressalto, todavia, cercava a aposentadoria do ministro Celso de Mello: o presidente Bolsonaro, em momentos distintos, disse que nomearia um “ministro terrivelmente evangélico” , depois, que “tomasse cervejas com ele”. Nas duas afirmações um paradoxo inequívoco: fosse “terrivelmente evangélico” o futuro ministro não tomaria cerveja, porquanto não consumiria bebidas alcoólicas, como ocorre com os evangélicos.

Entretanto, somente dois requisitos  concorrem na escolha presidencial: notável saber jurídico e reputação ilibada. Posto que a reputação ilibada se baseie em circunstâncias quase sempre objetivas, o notório saber jurídico estaria sempre a ser submetido a complexas avaliações inter-subjetivas, tendo como objeto inevitáveis posicionamentos científicos e filosóficos, permeados, num plano mais fundo, por visões ideológicas e políticas.

O ministro Celso de Mello resolveu antecipar, por alguns dias, a sua aposentadoria e estabeleceu o dia 13 de outubro de 2020 para encerrar cinquenta anos dedicados ao serviço público. Grande Celso, que pouco ou nada fica a dever àquele que decerto fora a inspiração de seu nome, o filósofo Celso, o romano de origem grega que formulou o mais primitivo conceito do Direito (“ius est ars boni et aequi”: o direito é a arte do bom e do equitativo), e que levou à compreensão do que venha a ser a “justiça”.

Conhecedor de que o ministro Celso de Mello anteciparia a sua aposentadoria para o dia 13 de outubro de 2020, o presidente surpreendeu a nação ao anunciar que o seu indicado para substituir de Celso de Mello seria o desembargador federal Kassio Marques, do Tribunal Regional Federal de 1ª Região, competente magistrado há nove anos ( nomeado por Dilma Rousseff) que, por méritos próprios, já era candidato a uma vaga no Superior Tribunal de Justiça. 

A comunidade jurídica aplaudiu a escolha do presidente Bolsonaro, em especial a OAB que guarda, por seu presidente, Felipe Santacruz, enorme distância do Palácio do Planalto. Claro, no oceano de punitivismo penal que se tem no Brasil, inspirado sobremaneira pela ideologia ‘lavajatista’, a chegada de um juiz garantista ao STF –  entenda-se por garantismo penal a doutrina que tem como maior expoente e formulador o italiano Luigi Ferrajoli, que na sua acepção mais singela e que nos interessa aqui, seria um sistema de vínculos impostos ao poder estatal em garantia dos direitos dos cidadãos, sendo possível falar-se em níveis de efetividade  dessas garantias  previstas constitucionalmente e que se concretizam nas práticas judiciárias do Estado-juiz -, deve ser louvada como algo extraordinário, sobretudo, se essa realização pode ser atribuída a um governo de cariz ultraconservador como o do presidente Bolsonaro.

O garantismo penal de Kassio Marques está prefigurado em muitas das decisões que tomou na condição de desembargador federal do Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Claro, ele pode continuar como garantista penal a exemplo do seu antecessor Celso de Mello, mas, poderá sofrer a mutação maligna – o beijo fatal do punitivismo penal – que contaminou gravemente Cármen Lúcia Antunes Rocha, Edson Fachin e, pasmem, Luiz Roberto Barroso. Antes de sentarem nas poderosas curuis da Corte Suprema brasileira, eram progressistas, garantistas, modernos e mesmo até esquerdóides, porém, o peso da toga os transformou em “terrivelmente” conservadores, obscurantistas e punitivistas radicais.

Assim, a boa expectativa é que Kassio Marques não abjure o seu passado de bom magistrado e que possa cumprir, no Supremo Tribunal Federal, onde decerto ficará por muitos anos, se Deus consentir, o bom e belo desígnio de revelar o direito nestes tempos estranhos de obscurantismo, barbárie e global pandemia. Salve.

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