Caminhando e cantando

“A cidade acorda e sai para trabalhar, na mesma rotina, no mesmo lugar”, verso da música Conformópolis, do grande músico Di Melo. Depois de muita resistência, laudos falsos(imaginários), dores na cabeça no dedo mendinho do pé esquerdo, desculpas descaradamente esfarrapadas para Roberto Freitas, meu genro fisioterapeuta – a quem agradeço todos os dias e todas às vezes que me oferece oportunidade e, assim farei sempre, por seu atendimento imediatamente nas primeiras horas do meu AVC – que dizia se eu não caminhasse, certamente, acrescentaria mais uma deficiência à minha “cacunda”, desta feita, física.

É verdade, passados 2 anos a minha fonte de alegações para não deixar o calor da cama definhou, sua força gorou, tal qual o argumento do energúmeno que vomitava não haver corrupção no seu desgoverno. Porém, Maria também perdeu a paciência e, unilateralmente, decretou: “A partir de hoje, vamos caminhar!”. Ainda tentei um habeas corpus junto a mais alta corte familiar, para ter o direito inalienável ao bom cristão de permanecer deitado no seu “berço”, pedido indeferido pelos netos, com anuência dos filhos, em complô fizeram coro com Maria. Hoje acordo com a cidade, torturando minha admirável e amada preguiça da alvorada, saio para caminhar como quem vai à fila da Caixa Econômica para receber o “milionário auxílio emergencial de R$ 150,00”. Na verdade, essa coisa de caminhar é uma tortura disfarçada de ter efeitos à vida saudável, um castigo permanente. No instante em que ponho o pé fora da cama, igual a Sísifo, imagino logo que cumpra a árdua tarefa o dia acaba e amanhã terei que fazer tudo novamente, igualzinho. 

No trajeto encontramos gente indo e vindo de carros, ônibus, motos, bicicletas e outros a pé, todos apressados. São trabalhadores que por motivos mil não podem ficar em casa em isolamento social e são obrigados a cumprir seus destinos. Cada um com suas histórias de vitórias e derrotas, acertos e erros, amores e desamores. São pretos, brancos, mulatos, pardos, homens, mulheres, LGBT+, católicos, evangélicos, umbandistas, espíritas, com partido, sem partido. Na verdade são apenas humanos condenados a comerem o pão que o diabo amassou, dia após dia, além de tudo, não bastasse os dessabores da falta de transporte público com o mínimo conforto, educação de qualidade para si e seus filhos, saúde,  salários dignos ainda são forçados a enfrentarem a besta-fera do Coronavírus e aquela outra inquilina do Palácio do Planalto.

Quando os ônibus apinhados passam por nós, me pergunto que destino terá essa gente? Não daqui há um ano, dez anos, mas logo amanhã, no dia seguinte? Na volta sempre passamos por um senhor com seus 1,60cm de altura, uns 120 quilos, estático junto a sua moto a espera de compradores para seus salgados e sucos, que ora, descansam no bagageiro da Cial. Me entristeço e, certamente, se soubesse rezar, rezaria, como não sei, com um nó na garganta sigo caminhando e cantando, em silêncio.

Brito e Silva – Cartunista

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