Há 18 anos, morria em Mossoró, Dorian Jorge Freire, referência do jornalismo local
Há exatos 18 anos, falecia em Mossoró, o escritor e jornalista Dorian Jorge Freire. Nascido em Mossoró, aos 14 de outubro de 1933, filho de Jorge Freire de Andrade e da professora Maria Dolores Couto Freire de Andrade, Dorian iniciou a sua vida no jornalismo, seguindo os passos do pai e logo aos 12 anos de idade já ocupava uma coluna no jornal O Mossoroense.
Ao longo da sua vida, morou no Rio de Janeiro e São Paulo, onde se firmou como um jornalista combativo e de grande estilo. Entrevistou figuras importantes como Jânio Quadros, Aldous Huxley e Jean-Paul Sartre (Prêmio Nobel de Literatura).
Também manteve contatos com Fidel Castro, Elizabeth II, Craveiro Lopes, Raymond Cartier e Greene. Foi fundador, juntamente como Alceu de Amoroso Lima e Samuel Wainer, do jornal Brasil Urgente, um dos precursores da imprensa independente do país. No Rio Grande do Norte escreveu para os jornais Tribuna do Norte, O Mossoroense e Gazeta do Oeste. Dorian faleceu aos 71 anos de falência múltipla dos órgãos. Confira abaixo crônica de Dorian Jorge Freire em homenagem a Mossoró, gentilmente cedida pelo Blog do Carlos Santos.
SOU MAIS MOSSORÓ-RN
Por Dorian Jorge Freire
Natal, maio de 1985.
Lembrando Pedro Nava, eu sou mossoroense “de propósito”. “Só de mal”, como diria meu querido Guido Leite, assassinado impunemente.
Não poderia ter nascido em outra parte. Nem no Aracati de meu Pai, nem em São Paulo de minhas saudades mais leais.
Definitivamente, Mossoró.
Conhecendo – como Jaime Adour da Câmara – Oropa, França e Bahia, sendo tiete das velhas cidades mineiras e também de Olinda, Alcântara e São Luís, minha opção preferencial é sempre por Mossoró.
Paris, eu amo antes da primeira vista. Florença, amor à primeira vista. Ainda assim, sou mais Mossoró.
Dirão que há, em Paris, o Café Procope. Mas eu fico com o Café Tavares.
Ainda em Paris, encontramos as ruas St. Séverin e St. Jacques, roteiro de Dante. Mas eu prefiro a 30 de Setembro.
Cortot? Temos o Beco de Jeremias Cego. Chevalier de la Barre? Vicente Sabóia.
Mossoró não me deu apenas a certidão de nascimento. Deu-me, também, o seu temperamento. E, uma a uma, as suas idiossincrasias.
Sou vidrento como Mossoró é vidrenta. E não sou exceção. Qualquer mossoroense é assim.
Em São Paulo, por exemplo, o velho Estevão Cruz colecionava rótulos de Cerveja Mossoró, que lavava com as suas lágrimas. No Recife, um grupo chefiado por Mário Marques tem reuniões sucessivas em Boa Viagem para falar em Mossoró.
No Rio, no bairro de Ipanema, Raimundo Nonato não falava em outra coisa dia após dia – Mossoró, Mossoró, Mossoró. Em Brasília, 24 horas diárias, Vingt Rosado faz mossoroísmo. Wilson Lemos, exilado há mais de 30 anos, telefona dos confins de Mato Grosso para pedir notícias.
Meu Pai, cearense, vivendo seus últimos dias no país do sul, pedia que as suas cinzas e sementes fossem plantadas em Mossoró. Jaime Hipólito Dantas, em Natal desde março, trancado em seu apartamento, curte as saudades mais melancólicas.
Não é bairrismo. É mania. Mania? É vício. Os mossoroenses somos viciados em Mossoró.
Disseram – parece que foi Grimaldi Ribeiro – que Vingt Rosado era um deputado municipal. Vingt inflou de orgulho.
Duas vezes impediram Dix-huit de governar o estado. Sabem a resposta mossoroense? Duas vezes fizemos Dix-huit nosso prefeito.
Dias atrás anunciaram que o meu exílio natalense estava no fim e que eu voltaria para Mossoró. Foi um alvoroço no meu coração e lá em casa. Os netos vibraram, o pé de cajá deu uma carga temporã, os coelhos ficaram mais ativos, o canário – mesmo belga! – cantou o Hino Nacional com o charme da Nova República de Fafá de Belém. E meus 10 mil livros? Machado valsou com Colette, num assanhamento que só vendo.
Não sabem os filisteus e saduceus, os nefelibatas, que exílio de mossoroense é marcado pela transitoriedade? Mossoroense está sempre voltando à sua terra. Senão em vida, na força do homem e da mulher, no molho de ossos bem lavados. Basta encostar o ouvido no chão, que há o chamado da terra.
Estarei falando demais de Mossoró? Conversa! De Mossoró fala-se sempre de menos. Deve est ar acontecendo que o meu subconsciente não aprova a minha ausência. Não aprova que eu fique longe do 30 de Setembro, longe de Santa Luzia, longe das valsas de Zé de Ana, longe das matinês do Ipiranga, longe dos bailes da ACDP, longe do sol da seca ou da água da inundação.
Sei que não faço falta, que há 180 mil irmãos voluntários da pátria a serviço do capitão Dix-huit. Ainda assim…
Ainda assim, Mossoró. Mossoró, sempre.
E se me permitem, deixem que eu puxe a memória e lembre histórias. Não sou dos fundadores da cidade, nem vi bangolando por estas capoeiras os índios monxorós, nossos bisavós. Mas prestei, calado, muita atenção a conversas dos mais velhos. E arquivei na memória alguma história e muitos causos.
Sei que éramos simples e cordiais, hospitaleiros, que pensávamos que o visitante poderia ser Nosso Senhor e era preciso acolhê-lo carinhosamente, com renda limpa, lençol cheiroso, água fria e café quente.
Sei também que vivíamos em paz uns com os outros, embora não habitássemos o Paraíso e vez por outra caningássemos com nossos irmãos em querelas sempre terminadas ao redor de uma tapioca.
Essa situação indiscutivelmente cordial, partida só de quando em vez por encharcamento mais febril, subsistiu até os anos 40, começo da dezena seguinte. Quando éramos mais ou menos 30 mil orgulhosos mossoroenses.
Respeitávamos o prefeito, venerávamos o bispo, temíamos o delegado de polícia, confiávamos no juiz, admirávamos os intelectuais, estimávamos os tipos populares, amávamos as mulheres e não trancávamos nossas portas nem nossos corações.
Mas veio a política roxa sucedendo a queda da ditadura. PSD de um lado, do outro UDN, e o mais era enfeite. E veio a ambição do poder, a disputa acesa como brasa de acender o pito. Começou, então, a ciranda do desaforismo. Em crescendo. Cada vez mais agressivo, mais contundente. Era doutor Tarcísio contra doutor Nicodemos. Era Walter Wanderley contra Mário Negócio. Eram Mota Neto, José Luiz, Dix-sept .
Dois jornais se digladiavam. Afora eles, havia os folhetins, os alto-falantes, os comícios perigosos. Um boletim surgia contra um, dissecando um sabujo. Menos de 12 horas depois, vinha a resposta furiosa: dissecando um cadáver. Parecia até que a política municipal se fazia num Instituto Médico-Legal…
Foi a partir daí – lembro – que começou a invadir a cidadezinha, antes serena e boa, hospitaleira e cristã, um cheiro de rosas machucadas das que enfeitam a morte antes de enfeitarem a vida. Seguido do cheiro aziago de vela de velório.
Mau presságio. Todos tínhamos nossos partidos, todos estávamos partidos e repartidos pelas paixões inflamadas, mas não havia ninguém que quisesse ir ao enterro do outro. E quando a coisa descambou da política para caso de polícia, os contendores receberam convite do padre Mota, ex-prefeito de M ossoró e vigário-geral da diocese, para uma conversinha.
Todos atenderam ao chamamento. Iam chegando à casa do gordo padre, que os esperava, despreocupado, fumando seu charutão e indo lá dentro buscar a cadeira para escutar o cura d´aldeia.
E levavam um baita carão:
– Tenham modos! Vocês não são crianças! Lembrem-se que todos somos uma mesma família, sem Caim, só Abel.
Todos ficavam com os olhos no chão, feito Capitu. E um a um, cada qual foi levando sua cadeira lá para dentro e saindo com o sorriso irmão do grande padre.
Por que rememoro isso? Por nada, nadinha. Apenas para lembrar, mossoroense que sou desde o início dos tempos.