Supremos Vexames
Paulo Afonso Linhares
Em várias oportunidades e lugares diversos, externei meu irrefreável desacordo com o modelo da Suprema Corte brasileira desenhado na Constituição de 1988, seja tocante à sua indefinição institucional, sobretudo, por ser um misto complicado de corte de jurisdição comum, ‘chave de abóbada’ (Clé de voûte) do Poder Judiciário, em caráter extraordinário, e de jurisdição constitucional, na tarefa de controle concentrado de normas e desempenho do pomposo mister de “Guardiã da Constituição”.
Critica-se, com razão, o método como o Supremo Tribunal Federal decide em que enfatiza a personalização dos julgados, na figura do relator, em detrimento daqueles construídos pelo coletivo de juízes da Corte, a exemplo do que ocorre nos melhores tribunais constitucionais europeus, à frente a Corte de Karlsruhe, que é o Tribunal Constitucional da Alemanha (Bundesverfassungsgericht, na língua de Goethe), nos quais as decisões expressam o tribunal e não apenas resultam da atuação individual de seus juízes. No STF, os seus juízes (ditos “ministros”) tanto podem decidir individualmente – as decisões monocráticas -, quanto em colegiado, mas, mesmo nesta última hipótese os julgados trazem a marca definitiva de cada relator, originário ou designado para o acórdão, no caso de vitória do voto divergente.
Causa espécie, muitas vezes, as decisões contraditórias do STF, mormente quando aplica soluções opostas para casos assemelhados, segundo a reprovável fórmula do “dois pesos, duas medidas” (estava faltando a outra aspas). Exemplo: em decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, entendeu o STF que o ex-presidente Lula não poderia assumir o cargo de ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República, nomeado que fora pela então presidente Dilma Rousseff, pois ganharia foro privilegiado e não mais seria processado pela Justiça Federal do Paraná, o que configurar uma burla à lei. Entretanto, embora citado 34 vezes em delações da Operação Lava Jato, Wellington Moreira Franco foi nomeado pelo preside Temer ministro de Estado. Caso idêntico ao de Lula, porém, submetido o caso ao STF, o ministro Celso de Melo, decano da Corte, aplicou solução inversa: reputou como irretorquível a decisão presidencial, que Moreira Franco tinha direito, sim, ao foro privilegiado e isto não representa qualquer risco à Operação Lava Jato, mesmo porque no STF os julgamentos são criteriosos e decerto em nada inferiores aqueles das instâncias inferiores, claro. Enfim, para Lula um entendimento, para Moreira Franco, conhecido pela alcunha de “Angorá”, nos registros de propinas dadas e recebidas.
Entretanto, a crítica mais justa ao modelo desenhado na Constituição Federal se refere ao modo de como são escolhidos os onze ministros do STF. Com efeito, a escolha de cada um desses juízes depende da vontade imperial do presidente da República que, em homenagem ao sistema de separação de poderes, é submetido a uma sabatina no Senado Federal para aferição mais larga dos critérios constitucionais da reputação ilibada e do notável saber jurídico que devem exibir os agraciados com uma curul no STF. Claro, a despeito de alguns sabatinados não preencherem um ou ambos os critérios antes referidos, não há notícia de caso de reprovação nessas sabatinas senatoriais, à exceção do caso do ministro Barata Ribeiro, ocorrido no final do século XIX, a ser comentado adiante. A indicação presidencial dificilmente cai no Senado porque é raríssimo que o presidente da República não tenha ali uma base parlamentar majoritária.
Quando a escolha de ministro do STF é mais técnica – de um (tinha “uma” ao invés de um) respeitado e respeitável jurista em saber jurídico e probidade – as críticas são inexistentes ou poucas; quando é uma escolha ‘política’ o alarido midiático é sempre maior. Claro, apenas teoricamente, qualquer cidadão brasileiro nato maior de 35 e menor de 60 anos, no gozo integral de seus direitos, pode ser indicado ministro de STF, mesmo alguém que não tenha cursado uma faculdade de direito, mas, pela vivência, demonstre ter notável saber jurídico e reputação ilibada. Houve um caso: o médico Cândido Barata Ribeiro, foi nomeado pelo “Marechal de Ferro” tupiniquim, Floriano Peixoto, em 23 de outubro de de 1893, ministro do Supremo Tribunal Federal, sem ser bacharel em Direito, porém, em 24 de setembro de 1894, o Senado negou aprovação ao seu nome porque o parecer da Comissão de Justiça e Legislação considerou que ele não atendia ao critério do notável saber jurídico. Mesmo assim, ainda passou onze meses como ministro do STF, no pleno exercício do cargo, sob a proteção do seu poderoso padrinho: era notório o desdém que o Marechal Floriano Peixoto devotava à Corte suprema do Brasil, a ponto que, informado de que o advogado Ruy Barbosa impetrara no STF um habeas corpus em favor de vários oficiais-generais presos por sua ordem, indagou, entre sorrisos de menosprezo, sobre quem concederia habeas corpus em favor dos ministros do Supremo Tribunal Federal!…
Recentemente, a indicação feita pelo presidente Michel Temer do seu ministro da Justiça, Alexandre de Morais, para a vaga do ministro Teori Zavascki, vem causando muitos comentários negativos que, de modo genérico, se resumem nas assertivas de que lhe faltariam ambos os requisitos constitucionais do notável saber jurídico e da reputação ilibada, o que não deixa de ser um exagero. De princípio, cabe aludir que a indicação é prerrogativa exclusiva do presidente da República e que enfrenta apenas o óbice da aprovação pelo Senado Federal. Uma das críticas trombeteadas pela mídia nacional se refere à grave acusação de que Morais plagiara trechos de obra de jurista espanhol em um dos seus livros, merecendo restrições, também, o exercício de cargos de indicação político-partidária, em São Paulo.
Fato é que, no mínimo, há mais de quatro centenas de juristas brasileiros que estariam até em melhor posição, nestes dois critérios, que Alexandre de Morais, todavia, não contam com o poderoso e decisivo beneplácito do presidente da República que, pelas enormes prerrogativas que enfeixa em suas mãos bem que poderia envergar, hoje, aquele que no passado serviu como dístico ao soberano francês Louis XIV, o “Rei-Sol”: Nec pluribus impar. Literalmente, “não desigual a muitos” ou, numa tradução bem livre da língua de Cicero, “acima de todos os homens”…
Por fim, duas coisas em favor do novo ministro: tendo em vista os critérios constitucionais já tão referidos, ele certamente é melhor dos que algumas dezenas de outros ministros que já passaram pelo STF e, em segundo, é balela essa história de que sua indicação seria parte de um plano para deter a Operação Lava Jato que, no STF, já tem um relator, além de estar sob os holofotes da grande mídia brasileira, de modo que a chegada de Alexandre de Morais pouco vai influir no resultado. No mais, o que conta mesmo é a tarefa inadiável de um redesenho da estrutura e do funcionamento do Supremo Tribunal Federal, com ênfase na adoção de um método de escolha de seus juízes que confira um maior grau de legitimidade política, com a redução do poder presidencial nessa indicação e permita a participação de outras instituições do Estado e da sociedade brasileira. E pode evitar outros supremos vexames.