Feijão verde

Meu dia começa cedinho com o galo cantando, quer dizer, com uma sinfonia desafinada de pardais, bem ao lado de minha janela, na verdade é uma algazarra dos diabos, na verdade creio que seja um “abufelamento”, talvez por alguns tocarem fora do tom. Enfim, tão logo soam os primeiros gorjeios salto da cama no rumo do escritório, que fica a dois passos do paraíso. Assim sendo, não fico imune às vozes da rua.

Cotidianamente há uma multidão gente gritando vendendo algo: tapioca, cuscuz, bolo e hortifrútis. O “desfile” geralmente é aberto por uma Toyota Hilux exibindo seu bico de alto-falante sobre a capota com uma voz cavernosa anunciando os produtos, seguida por uma castigada Chevrolet C-10, que é atropelada por um senhor de bicicleta com buzina de FNM (Fê-Nê-Mê) proclamando em alto bom som, no gogó mesmo: “Olhe a mini-pizza, temos de todos os sabores”. Destes sons já calejei, não os ouço mais. Porém, nessa mistura de vozes, ruídos, gorjeios e latidos uma fala feminina, aveludada, similar a de nossa Alzinete – cantora mossoroense – me despertou “Olhe o feijão bem verdinho”, abri a janela, acenei e desci. Abri o portão da garagem, de perto vi uma jovem senhora – dava para perceber sua juventude – com marcas, sulcos profundos em seu afilado rosto, que certamente outrora fora por muitos cortejada. Perdido em meus pensamentos imaginando cada ruga tatuada naquela face seria uma ferida não cicatrizada, era uma história de dor e sofrimento. Fui despertado “senhor, senhor, seu troco”, dei-lhe bom dia e segui.

Subindo as escadas lembrei de um vídeo ancorado no Youtube, onde uma pessoa inicia um diálogo com um vendedor de feijão verde, porém não é um qualquer vendedor, é o Ezequiel do Feijão, uma criança de 11 anos que trabalha todas as manhãs de domingo a domingo. Seu interlocutor, rir da desenvoltura do pequeno comerciante – ou como diriam os vendedores de ilusões: empreendedor – que orgulhoso diz “quem quer ganhar dinheiro trabaia todo dia”. Na verdade, o Ezequiel é um trabalhador mirim inserido na nova modalidade de contratação de mão de obra criada pela Reforma Trabalhista o chamado trabalho intermitente ou talvez por prestar serviço para o pai e ganhar metade do que vende poderia ser chamado de “meeiro”. Na conversa ele diz que está juntando dinheiro para comprar uma bicicleta de R$ 1.800,00. Seu interlocutor compra os 4 pacotes de feijão restante e propõem um “rolo”, o manda pedalar para sua casa e o segue em sua pick-up, sem dizer ao garoto que pretende presenteá-lo com uma bicicleta. No trajeto, continua empolgado enaltecendo, louvando a atitude da labuta do menino e também conta sua vida de trabalho quando criança.  

Os comentários do vídeo são todos exaltando, engrandecendo e agradecendo a ação do benevolente doador. Não vi um pio, uma fala sobre a exploração sofrida pela criança. Inclusive, com o garoto dentro do carro a caminho de sua residência para efetivar o presente, sabendo que iria receber críticas pelo vídeo de uma criança em flagrante trabalho infantil saiu logo para o ataque perguntando “O certo seria uma criança de 11 anos, que nem já temos aí matando e roubando? Traficando? Este seria o certo para alguns que vão criticar, né isso?”

É vergonhoso e criminoso o que acontece com as crianças pobres no Brasil. Não falo de quem fez o vídeo ou do pai – mas ambos exploram aquela criança, sem entrar no mérito: o vídeo obteve 2.377.438 visualizações – mas a falta de políticas publicas eficazes com capacidade de devolver a infância e perspectiva de uma vida melhor às crianças desse país verde e amarelo, que às vezes parece esquecido por Deus.

Segundo os últimos dados disponíveis de 2019, da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) 1,758 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos estavam em situação de trabalho infantil no Brasil. Em 2020, 160 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos foram vítimas de trabalho infantil no mundo (97 milhões de meninos e 63 milhões de meninas). Estas crianças não trabalham por heroísmo, porque gostam, porque é bonito criança trabalhar, elas o fazem por necessidade, para saciarem a fome, diria meu amigo Delegado (porteiro, filósofo, monge e sociólogo): São tigres de papel.

Vi nos olhos da bela vendedora de feijão verde a tristeza da infância perdida de Ezequiel, talvez de ambos. Não duvido em sua ascensão, que logo “prospere”, seja adulto antes do tempo natural, compre uma moto e se tiver sorte pode até comprar uma Chevrolet C-10 e com um bico de alto-falante saia pelas ruas de Serra Talhada/PB gritando “Vai passando Ezequiel do Feijão, é só pedir para parar que eu paro. Aceito cartão e Pix”. Talvez até empregando outras crianças, como faz seu pai alimentando esse círculo vicioso e criminoso. Assim este tigre de papel aparenta ter ganho robustez, agora como “empreendedor” passa a “tigre de papelão”.

Lugar de criança é na escola e sendo criança!!! Ah! Maria está me chamando, o feijão está queimando.

Brito e Silva – Cartunista

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