Eu morava na estante
Na minha casa, na rua Augusto da Escócia, N. 49, lá nos Paredões, em Mossoró/RN, o qual finquei a minha infância e adolescência, quando se chegava na porta da frente, logo do lado esquerdo um console – hoje, se diz aparador – e acima dele um espelho oval bisotado com vários desenhos em arabescos, nos davam as boas-vindas, do lado direito uma Radiola de pé ABC Isabela IV, duas cadeiras de balanço as quais tínhamos que driblá-las para chegar a uma estante colonial que pomposamente se erguia separando a sala da cozinha, nela uma inquilina privilegiada e por todos amada, lhe roubava a cena: uma Televisão Telefunken em preto branco, com uma tela colorida – que mais parecia o arco-íris, que insistia em nos enganar simulando que às imagens por ela propaladas eram coloridas.
Neste cenário sobre a estante de cor nogueira, se destacavam vários livros, entre eles os Irmãos Karamazov – Dostoiévski -, em cor marrom com letras vermelhas-vinho, três livros de capas-duras, os quais lia e não entendia patavina – até hoje sou impedido por minha obtusa ignorância a oferecer um parecer sobre -. Em espaço exclusivo um livro saltava aos olhos, em formato grande, talvez um A4 – ofício para os mais antigos -, de capa dura, azul com letras romanas douradas dizia: Bíblia da Juventude, eu era fascinado, nela imprimi minhas digitais e de onde pude extrair um gosto de lutar por um mundo melhor, com mais compaixão, mais dignidade, mais igualdade. Na parte direita inferior da estante alguns locatários faziam morada, muitos deles ainda vivem em minha memória. Vejo nitidamente Francisco José cantar “Só nós dois” sendo interrompido por Ângela Maria com seu “Tango Pra Tereza”, sem falar de Vinicius de Moraes que faz seu “Apelo” e Moacir Franco flertando com os manequins em “Balada Para Um Louco”…
No lado esquerdo inferior se abancavam as revistas Cruzeiro, Manchete, Rodovia e algumas Veja. Nossa estante era uma mistura de vozes, umas cantavam alto ao divino, outras, talvez, ao diabo e ainda outras sussurravam profanamente aos ouvidos dos amantes. Às vezes me passava pela cabeça que eu morava por lá, fazia parte do mundo daquela gente, na verdade ainda hoje me imagino perambulando por aqueles cantos, contos, palcos e esquinas insinuando companhia e intimidade à todas aquelas personagens que ali residiam.
Brito e Silva – Cartunista