Especial: A (meta) pintura de Laércio Eugênio

Por Márcio de Lima Dantas 

Laércio Eugênio (Sítio Mata Seca, Frutuoso Gomes, 1959) assenta-se, contemporaneamente, como um dos mais importantes artistas plásticos do  Rio Grande do Norte. Detentor de uma dicção pictórica assaz original no que  concerne aos meios utilizados pela pintura desde sempre. Acontece que o  artista optou por outro caminho, imprimindo à sua obra um tanto de  originalidade, fazendo com que marque um diferencial com relação aos seus  pares. 

Com efeito, suas telas parecem ser puro pretexto para questionar uma  representação realista ou abstrata do mundo que o cerca ou como chegam as emissões do real em seu íntimo. Ora, o que parece almejar é discorrer acerca  do ato de retratar qualquer que seja o tema, em um movimento que se volta  sobre si mesmo, chamando atenção e proclamando, – por meio de precisas  pinceladas mais espessas, ora usando o pincel, ora arrematando com a  espátula, – que o sistema semiótico pintura é uma outra realidade. 

Assim sendo, descobrindo seus próprios meios, ou seja, autodesvelando-se,  em uma atitude que tem muito de crítica, no sentido de que a tela não mais  busca ou salienta o que chamamos de tema, conteúdo ou significado. Vai  valer pelo significante, pela forma, em movimento que se volta sobre si  mesma. Ora, nada mais é do que aquilo que sempre foi a ontologia da Arte:  há que mirar-se na forma, e não no conteúdo. 

A obra do pintor Laércio Eugênio é um discurso que se pretende um “tratado  de pintura”. Eis a tinta ocupando o lugar que seria do desenho, conformando  um possível lugar de volumes quase sempre estáticos, reafirmando o que  dissemos. É uma espécie de contemplar objetos isolados ou em conjunto,  conduzindo o ato de pintar para engendramento de uma outra realidade,  antípoda ao que chamam de real empírico, lugar onde sucede a interação  entre os homens, seus objetos, seus sistemas de valores, suas maneiras de  agir ou representar. E suportando todas as atribulações, sendo espécies de  marionetes, em um eterno embate com as forças que nos chegam à nossa  revelia, impondo mando e jugo. 

Mas eis que temos a arte para nos redimir, uma dimensão outra perpetrada  por uma singular presença no mundo, consignando contornos, inventando  perspectivas, percebendo ângulos inusitados, alterando a ordem ditada pela Ideologia, fazendo-nos crer em uma possível outro jeito de pensar. Enfim, o  que de um imo singular emanou, dessa presença individual chantada nos  logradouros da realidade, de um que ousou pensar diferente e tornou essa  matéria em arte, eis a suprema capacidade de expressar uma pluralidade, um  coletivo, uma etnia, um país, um dado momento histórico e o seu Ar do  Tempo. 

Antes do mais, há que dizer que farei uso livremente das funções da  linguagem propostas pelo linguista russo Roman Jakobson (1896 – 1982).  Sua proposta das funções da linguagem é bastante dúctil, possibilitando que  se analisem outros sistemas semióticos, não apenas a Língua. O termo  Linguagem amplifica-se a todo e qualquer fenômeno da cultura, sendo que à  medida que houve uma evolução dos primeiros agrupamentos humanos de  caçadores e/ou agricultores, a língua foi se impondo como um dos mais  importantes meios de comunicação, dada a sua versatilidade e economia de  paradigmas conformando um sintagma. Quer dizer, um reduzido número de  fonemas é capaz de dar conta de línguas circunscritas a áreas geográficas ou  etnias com o mesmo laço de parentesco. 

Mesmo assim, as artes visuais seguiram paralelas, organizando  representações por meio de escrituras rupestres nos abrigos e cavernas,  também em baixos-relevos sobre o granito, como se tivesse sido riscado pela  mesma pedra. Esses são apenas alguns exemplos. Para além da dimensão  mágico-religiosa, havia a necessidade de expressão de um indivíduo à cata de inscrever fora de si uma outra realidade. Eis o que motiva o surgimento  da arte enquanto fenômeno de cultura, da mesma forma o que impulsiona  aos que, parece, sentem necessidade de cumprir determinada ordem vinda  das regiões mais profundas do seu íntimo. 

Esse conceito de Função Metalinguística empregaremos para analisar em  uma perspectiva ensaística a obra de um pintor originalmente relacionada  com o desenho, visto ter colaborado durante muito tempo como cartunista  do jornal Gazeta do Oeste, tendo despertado para a pintura em 1988. Aqui já  expusera seu talento em um desenho firme e detentor de uma dicção  extremante criativa. 

Separaremos, para fins didáticos, sua obra em três arranjos. As naturezas mortas, as paisagens e as marinhas. 

Suas naturezas-mortas detém características bem particulares, começando  por manusear uma rica paleta de cores e seus respectivos tons. Expressa o  pleno domínio da luz que esplende sobre arranjos de flores ou frutas isoladas,  em um preciso sombreamento. A luz nessas telas assoma sempre de um ponto, maneira arguta e sensível de fazer com que o objeto em cena quedado proeminente, resplandecendo a luz que ilumina a composição retratada por  meio da técnica expressionista: consistentes pinceladas que mais parecem ter  sido feitas de chofre, como se não houvera previamente o desenho. Evoca  uma espécie de pressa, no melhor sentido que possa haver. As grossas  pinceladas sugerem mais um artista pleno no domínio de seus meios. 

Tenho para mim, que os vasos de flores talvez sejam o que de melhor  conseguiu fazer valer sua estética, em uma maestria capaz de lograr êxito a  partir da sua experiência com as telas e os pincéis, demonstrando suas  capacidades de imprimir uma hegemonia da cor sobre o desenho, em um  despotismo de formas, cores e contornos capazes de desmistificar o retratado  como lugar agradável e puramente decorativo. 

O Expressionismo enquanto estilo histórico ou escola vinculada às  vanguardas que surgiram no início do século XX, caracteriza-se por buscar  a transmissão de emoções por meio de uma técnica muito parecida com uma  forma abrupta de transmitir para a tela o real e seu entorno. Isso mesmo, uma  espécie de pressa ao colocar em grossas camadas ou pinceladas, com  espátula ou pincel, o que se apresenta ao olhar ou se movimenta no entorno  do artista. Desse modo, alguns procedimentos empregados desde sempre são  esquecidos. Basta ver como os vasos com flores estão muito mais do lado de  insculpir emoções do que imprimir na composição um equilíbrio de formas  ou procedimentos desde sempre buscados por escolas de pinturas do  passado. 

Por isso, fomos buscar adjutórios, para efeito de compreensão, nas funções  da linguagem. Essas telas referendam uma arte que se dobra sobre si mesma,  como se quisesse testar o código. Assim sendo, podemos inscrevê-la como  uma arte metalinguística, na medida em que não busca retratar aspectos  tendo em vista uma cópia da realidade, como por exemplo, a estética  Realista, Romântica ou Acadêmica. Ao dobrar-se sobre si mesma, acaba por  revelar o caráter de que estamos diante de um objeto no qual outorga um  discurso de que não passa de uma composição, cuja organização cromática  chama atenção para as possibilidades de se plasmar algo que pode até  remeter a um referente do real, mas não se quer uma cópia deste. 

As paisagens propostas por Laércio Eugênio também remetem ao que acima  discorremos, no sentido de buscar a luz, sendo que aqui procura captar a  luminosidade natural, quer seja nas praias, quer seja em ermas zonas,  parecendo muito mais fruto da imaginação do que factíveis de existirem.  Reforçando a ideia de recortes do real muito mais como desculpas para se elaborar o luzir claro de um possível sol e uma possibilidade de encetar  contrastes entre cores e nuances que se opõem, como o azul, a terracota e o  verde.  

Com efeito, encontramos nas telas amplos céus azuis, conformados por meio  de espessas pinceladas em diversos tons dessa cor. A perspectiva é  conseguida quase sempre através de alguma nuance, não do desenho, que  desaparece, para dar espaço e vida às cores que entram na composição.  Sugere precisão e uma falsa urgência, pois sabemos que essa espécie de  técnica requer tempo, silêncio e um olhar atento, distanciando-se, vez em  quando, para saber a exata medida do que se está elaborando. 

Fica difícil não chamar atenção para a luz, com sua clara transparência, assim  como se passasse direto, vinda do firmamento, não recebendo nenhum  obstáculo. O artista consegue com destreza alcançar, com imensa  propriedade, esse privilégio das zonas rurais ou de algumas cidades  nordestinas. 

Por fim, vejamos o virtuosismo do artista em dos seus temas principais, as  marinhas. São detentoras de imensa beleza cromática, fazendo valer o que  ousou e usou nas paisagens. Nada devendo a ninguém. Limita-se a engendrar suas telas, como pessoa um indivíduo discreto e sem nenhum vestígio de  soberba, apenas transforma em paisagens marítimas as ordens que emanando  seu interior. Esse mando e necessidade que forças da natureza demandam  transformar em “energia” uma “dínames” (Aristóteles). Assim como se fosse uma imanência, algo que chafurda dentro de si,  ansiando por se tornar Arte. E com o pintor Laércio Eugênio, encontramos  esse A no melhor sentido, de benfazejos objetos incorporados aos que o  cotidiano já detém, sendo que na Arte, e sobretudo nas marinhas, há uma  nova forma de contemplar a realidade, na medida que há um diferencial, pois  refrata o que formos acostumados a ver ou o que nos dizem como ver. Aqui  há um novo projeto de vida: transmitir sentimentos por meio de uma  determinada maneira, ou seja, de como se assenta a realidade no interior do artista. E assim ele transmite, por meio da sua pintura, as emoções que  rebentam em seus músculos, ossos sangue, estrumando os cães adormecidos  na sua alma, fazendo com que se transformem em uma outra realidade  possível.

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