Elza Soares e o carroceiro
Existem algumas coisas que podem nos constranger no dia a dia, mas de fato, não alteram nosso humor, são apenas momentos que passam sem maiores ou nenhum dano moral e muito menos psicológico. Entretanto, quando vejo alguém me estendendo à mão pedindo algo para saciar a sua fome, isto me causa uma dor, uma angustia profundamente dilacerante no fundo da minh’alma e neste momento faço o que me é permitido: às vezes pode até ser uma negativa, o que me deixa ainda mais pesaroso.
Outro dia, logo pela manhã, ao acaso deparei-me com Luiz Gonzaga na primeira página de abertura do Youtube, de cara vi Vozes da Seca apertei o play e Seu Lua cantou: “…Uma esmola a um homem que é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão…” música do grande Zé Dantas e o Luiz Gonzaga, que em toda sua extensão é uma crítica feroz aos governos que trataram – e tratam, pois, continua atual – o Nordeste e o povo que vivem em situação de risco. Fiz algumas reflexões, anotações e alguns rabiscos.
Sai à minha janela para me debruçar sobre sua soleira para ver o mundo, o céu estava azul convida a contemplá-lo, corria uma brisa vindo ali dos arredores do Arena das Dunas, compenetrado em minha abstração, em devaneios mil, fui acordado por um “muito obrigado, senhora”, era um carroceiro de uns 35 anos acompanhado de uma senhora grávida que beirava a mesma idade, dois meninos por volta dos 5 anos – pareciam gêmeos – amontoados numa carroça um jumento amarado a grade lateral do transporte, que agradecia minha vizinha de frente por receber um vestido e algumas camisas às crianças, que já vestiam ali mesmo, se despedindo vocalizou “Deus lhe pague”. A mulher entrou e eles seguiram, fiquei observando e uns metros depois vi o homem passar as mãos nos olhos como quem enxuga lágrimas e correu de encontro a um dos meninos o pôs sobre os ombros e saiu correndo fazendo “aviãozinho” como se fora o judeu Guido (Roberto Benigni) e seu filho Giosué(Giorgio Cantarini) na cena do magistral “A vida é bela”, devo confessar que desabei, um nó na garganta e algumas lágrimas verteram me trazendo à realidade, naquele instante pude perceber que a vida pode ser bela, mas o homem é invariavelmente cruel.
À tarde, ainda com a cena vivinha em minha mente fui às redes sociais cuidar dos afazeres profissionais, entretanto, uma foto de uma plasticidade admirável obrigou-me ao encantamento, era um post da Assistente Social, Katharina Gurgel, com um texto comovente em que a cantora Elza Soares fazia uma síntese de vida, no qual ao final imprimia toda sua força, sua coragem, sua luta, sua consciência, sua lucidez ante a vida e seus desafios: “Naquela época eu achava que se tivesse alimentos pros meus filhos, não teria mais fome. O tempo passou e eu continuei com fome, fome de cultura, de dignidade, de educação, de igualdade e muito mais, percebo que a fome só muda de cara, mas não tem fim”.
À noite, Elza Soares e o carroceiro foram os temas da janta. Dormi com a alma cansada e o coração apertado com sede e muita fome de justiça social, dignidade e bênçãos dos deuses.
Brito e Silva – Cartunista