BRASÍLIA DESBOTADA
Paulo Afonso Linhares
No final da década de 1970, quando o ciclo de governos militares demonstrava já enorme exaustão e nas ruas crescia o movimento pela retomada do Estado (democrático) de direito a partir da discussão e aprovação de uma nova constituição, ocorreu no Cine Brasília um evento em que falariam dois dos mais qualificados antagonistas do regime militar: o arquiteto Oscar Niemeyer e o antropólogo e escritor Darcy Ribeiro. O primeiro, foi o homem de cuja prancheta saíram os projetos de todos os monumentos e edifícios importantes da capital federal, inclusive o próprio que abrigava aquele evento. O segundo, fundador da Universidade de Brasília, ministro da Educação e intelectual respeitado, aqui e alhures, por seus escritos em diversos domínios do conhecimento.
Foi uma tarde inesquecível para aqueles jovens que lotavam o grande auditório, a maioria já nascida depois de 1964. Dois gênios da raça brasileira, independentemente da aceitação ou não de suas posições políticas e ideológicas. A despeito do reconhecido brilhantismo de Darcy, todas as atenções se voltavam para Niemeyer, há muito tempo afastado do Brasil, que fez uma retrospectiva sobre a concepção urbanística e arquitetônica, enquanto rabiscava sobre grandes folhas de papel-manteiga dispostas em um cavalete: o criador desnudando, a partir de singelos rabiscos, o seu processo de criação. Inesquecível. O mais relevante, contudo, foi a ênfase que deu na elucidação da base humanística de sua obra e do seu parceiro, o urbanista Lúcio Costa, contemplando aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos. Em suma, Brasília seria um bom local para a vivência humana, claro, desde que mantidas as premissas de sua concepção. E isto lastimavelmente não aconteceu nas décadas seguintes à fundação em 1960.
Das grandes linhas traçadas por seus idealizadores, pouco restou em Brasília. Tudo o que foi possível fazer para desvirtuar o projeto Lúcio Costa/Niemeyer, pelos motivos mais diversos foi feito: na época dos militares, por simples pirraças político-ideológicas; depois, por um mistura de ignorância, populismo (o ex-governador Roriz distribuiu milhares de lotes no entorno de Brasília, causando o surgimento de centros urbanos populosos, porém, de precárias estruturas urbanísticas) e mesmo da velha conhecida de todos que é a corrupção pura e simples.
Envelhecida precocemente, Brasília enfrenta a pecha de ser, hoje, a capital da suprema esbórnia em todos os sentidos, sobretudo, agora, com as revelações constantes de grandes escândalos de corrupção a envolver altas personalidades da República, empresários importantes e executivos de grandes empresas, ademais do envolvimento de partidos políticos e expressivas lideranças, protagonizando uma das mais graves crises da história republicana.
No bojo de mais um preocupante evento que plasma a atenção do Brasil, que é o movimento de caminhoneiros e com presença em todas as regiões do país, Brasília nunca pareceu tão refém de tudo e tão perdida, sem rumo, vazia de pessoas e de veículos nas ruas, amedrontada e triste, onde começam a faltar combustíveis, gêneros alimentícios, medicamentos e… esperança. Brasília desbotou.
Sem precisar descer a detalhes, basta dizer que esse movimento que deixa expostos os nervos do Brasil não é uma greve, mas, manifestação política de uma poderosa categoria econômica que, consciente de seu poder de fogo, resolveu dar as cartas e colocou as instituições do Estado no canto do ringue. E o que eram reivindicações meramente de cunho econômico, passam a ter uma tintura cada vez mais política, embora seja um movimento de lideranças dispersas e diluídas, além de política e ideologicamente confuso.
Contudo, de modo mais presente ressai a intenção política de impedir as eleições deste ano, com o afastamento do presidente Temer e até, pasmem, de uma volta dos militares ao poder. Coisas malucas e que nada têm a ver com as bandeiras iniciais dessa categoria econômica (por isto é que não se pode falar em “greve de caminheiros”). Neste país, aliás, na mesma velocidade em que se plantando tudo dá, como já disse Caminha na famosa carta do ano 1500, igualmente aqui todas as coisas e instituições se desvirtuam.
Parece que as cores esmaecidas de Brasília refletem as enormes dificuldades que os impasses institucionais ora vividos impõem à nação como um todo. É como uma ‘icterícia política’ que embora assim atinja todo o país, reflete-se apenas nos “olhos amarelados” de Brasília. Entretanto, o bom é que tudo passa e que não se pode abdicar da busca por melhores dias, pois, como contatou o mesmo Oscar Niemeyer, “a Humanidade precisa de sonhos para suportar a miséria, nem que seja por um instante”. E de esperança, sempre, para vencer o desânimo e o medo. Assim, toca para frente, Brasília.